sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

o senhor p. m.

    O texto do senhor p. m. diz não, mas o subtexto do senhor p. m. diz um dia há de ser sim.
    Pode pensar-se que, se o senhor p. m. estivesse vivo para dizer texto antes de o senhor Stanislavski ter estado vivo para mudar o modo como se diz texto, seria com certeza obrigado, como toda a gente naquele tempo, a dizer sim, se era sim que queria acabar por dizer.
    Teria de o dizer, porque não o poderia amealhar e atrasar. Naquele tempo, podia esconder-se dinheiro dentro de um colchão, mas não se podia esconder advérbios dentro do subtexto.
    Aliás, se o senhor p. m. estivesse vivo para dizer texto antes de o senhor Newton ter estado vivo para inventar a gravidade, tivesse ele dito sim, tivesse ele dito não, nada disso seria grave.
    E se o senhor p. m. estivesse vivo para dizer texto antes de o senhor Anónimo ter estado vivo para inventar o fogo, tivesse ele dito alguma coisa, tivesse ele dito coisa nenhuma, nada disso aqueceria ou arrefeceria fosse quem fosse.
    O senhor p. m. entrou em cena demasiado tarde.

sábado, 27 de janeiro de 2024

anno animae

ah!
bastou a boca aberta em seu maior diâmetro
e logo o espanto fez da opacidade
uma casca que sai sem descascar

declinámos o puro desejar
a pura fome, o medo, a repugnância
cada vez mais ineptos para ver
que nada saberia fazer ver
além do raio X

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

elginbtqia+

ele agora desde sempre
ao Benim pertence
sua brônzea consistência 
serve de evidência 
em tal caso controverso
mas eis que agora para sempre é parte
de um Partenão que o todo reivindica
tanta memória há nessa união marmórea
nesse fatal futuro, que ele diz
que o seu discurso de outra língua é alvo
– e eu próprio cada vez mais museu de mim

sábado, 14 de outubro de 2023

quando quiser

quero viver dentro do corpo
de uma baleia de desenho inanimado
ser recebido como um papa
estar entre ácidos
como no Conrad das Maldivas
ser Alexandre pela Safo conquistado

quero ser glúten que da pança
subtrai a calma
dormir no inverso do relento
como quem voa num tapete de Beiriz
quero ser rima miserável 
quero ser alma

sábado, 7 de outubro de 2023

mistral

mostro-te um olival cheio de humor
agora é claro que é bom
agora é claro que é mau
o poema pode ser compreendido
sem os pontos de Seurat
mas poder-se-á dizer o mesmo sobre
as linhas que Van Gogh interrogou

sábado, 10 de junho de 2023

Escape

Lá onde tudo é mar sem ter fundura
talvez esteja o estômago a subir em unda maris
embalando o templo pela parte de dentro –
o dinheiro que deves, teus herdeiros que o paguem

Lá onde tudo é céu, mas sem altura
talvez em dulciana um dos pulmões se ande a expandir
embalando o templo pelo lado do verso –
o cuidar a que te obrigas, seja a vida a cumpri-lo
quem sabe se até nem existe mesmo um deus?

Lá onde tudo é 'strela sem lonjura
talvez aposte a próstata em ser digna de nazard
embalando o templo pelo prisma do negro –
esse só mais um
esse só mais este
e ainda só mais outro, o silêncio que os escreva
em sua eloquência exponencial

sábado, 4 de março de 2023

Declinação

O pulso do rapaz não coincide
com o pulso do poema

um deles somente atrai
o outro está bem localizado – qual é qual?

Para a virilidade recetáculo
o pulso é mais flor que a mão

no rapaz ou no poema –
em qual lateja o magnetismo de um quintal?

De um somente se pode asseverar
que do coração decorre

mais pulseira do que pulso
o outro – mas qual? – é a jaez de uma jaez

Consoante o caso o pulso pode ser
do poema ou do rapaz

tão-somente é taxativo
que a pulso o que eles fazem é descer

Não sei

Se escreva sobre coisa delicada
se sobre coisa rude

Até porque não sei qual é qual, qual não é
e amo a delicadeza como amo a rudeza

Não sei se escreva sobre coisa branca
se sobre coisa livre

Da brancura só sei que ela é quase clareza
do livre apenas sei que se escreve sobre o igual

Não sei se escreva
sobre coisa que não existe aqui

mas que somente aqui deveria existir
Se escreva sobre aquilo que, para aqui estar

não impõe a existência como cláusula
mas somente a nobreza ou a crueza

Não sei se escreva sobre a bétula
se sobre o vidoeiro

domingo, 16 de outubro de 2022

Linha

Não lamentes se a areia dessa escrita
aqui soa a cadeia –
não se ouve bem nos bastidores
tudo aqui chega como mera música

Tão pouco estranhes se o cabelo em pé
do belo ator que em jambo hesita
aqui chega surreal
qual penteado de espinhas tiradas a um peixe

Não pressuponhas que essa luz
já não faz pérolas do corpo estranho –
não mais que pregas vês aqui do bastidor
como se el’ fosse a imprensa

É tudo uma questão
de o gesto variar em consistência
desde o horizonte que começa a estrada
até ao ponto de ser cruz

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Contrapposto

Quando nada é falência
Quando tudo é falésia

Quando a falésia tem
do húmido a humildade

e a vertigem abarca
desde o chão, desde o teto

Quando tudo é pesar
mas o pesar não pesa

até que o corpo passe
por entre o pensamento

Quando contra o canhão
nada há que não paire

e mesmo o filho do homem
faz marcha sobre o mar

Quando a espuma é a marca
que deixa a eternidade

quando é rara e se quebra
quase como um milagre

Quando nada é mais alto
que o valor de ficar

levantado ante o vago
desenrolar do mundo

Quando tudo é falésia
Quando nada é falácia